quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Português incorrecto nos Fanzines - Erro geracional: "Uma"(?) fanzine



Neste texto, inserido no "Aquinocanto", deveria estar escrito "e um novo fanzine vai aparecer".
 

Já tem sido escrito, com frequência, por estudiosos dos fanzines - nos quais me incluo, permito-me dizer - que o neologismo "fanzine", nascido nos Estados Unidos (o vocábulo surge em 1940, criado por Russ Chauvenet no seu magazine amador intitulado Detours, mas já antes existiam publicações que se encaixavam no conceito: Frederic Wertham, no seu livro "The World of Fanzines", indica a data de Maio de 1930 para o Comet, editado por Ray Palmer dedicado à ficção científica, como iniciador do movimento*), que será continuado na Europa nos anos 1960, quando também começa a haver publicações em edição de amadores, atribuindo-lhes o género masculino, pelo facto de, na génese do vocábulo, estar o objecto literário, com imagens, o magazine, termo também popularizado em Portugal nessa época.
(*) O primeiro dedicado à BD (aos comics, claro) seria o Fantasy World editado em Fevereiro de 1936 por David Kyle.

Fanzine, neologismo, mas já com verbete em dicionário (pela primeira vez, na 8ª edição da Porto Editora, de 1998), é formado pela contracção da palavra fan (fã, em português) e as duas últimas sílabas de magazine.

Logo, um fanzine é um magazine (ou revista, são sinónimos) feito, editado, por um ou uma fã, ou vários, ou até por uma entidade sem fins lucrativos, dedicado a quaisquer temas, sendo em Portugal a banda desenhada um dos mais frequentes.


Com efeito, em 1972, Ano I dos fanzines em Portugal, foram editados oito títulos: Argon - Janeiro, Lisboa; Saga - 1º trimestre, Lisboa; Quadrinhos - Abril, Damaia (não era mencionada Amadora); Copra - Verão, Coimbra; P.Druillet/P.Caza - circa meados daquele ano, Lisboa; Orion, Setembro, Lourenço Marques/Moçambique; Ploc - Dezembro, Moita; Yellow Kid - Dezembro, Amadora.


Capa do fanzine "Aquinocanto", da autoria de João Rubim. O fanzine apresenta duas capas diferentes, sendo a outra desenhada por Manuel Brito
 
Claro que os jovens faneditores Manuel Brito e João Rubim, não conhecem estes pormenores históricos, nem disso necessitariam para editar três números do fanzine "Aqui no Canto", e mais este, especial, todos com bandas desenhadas. Só que, no cartaz de divulgação, apregoam "uma nova fanzine".

Ora em Portugal sempre se disse "o fanzine" e note-se que também em Espanha se diz "el fanzine" (em castelhano) e "o fanzine" (em galego, igual à língua portuguesa). Veja-se na imagem O Fanzine das Xornadas.

Capa de "O Fanzine das Xornadas", editado aquando da realização das "VIII Xornadas de Banda Deseñada de Ourense" (na Galiza). 
Este fanzine espanhol é coordenado por Henrique Torreiro, "co patrocínio da Casa da Xuventude de Ourense, Concelleria da Cultura do Concello de Ourense e Dirección Xeral de Política Lingüística da Xunta de Galicia"

Tal como acontece em França, visível no excerto de uma crítica extraída da revista "Vécu":




Ou no Brasil, como se pode ver na imagem seguinte, na capa da 1ª edição do livro O Rebuliço Apaixonante dos Fanzines


Livro da autoria do estudioso brasileiro Henrique Magalhães

Custa-me dizer isto - sou português... - mas nós, que somos o país europeu com maior índice de analfabetismo, e com elevada percentagem de iliteracia, tínhamos de ser exactamente nós a criar esse absurdo linguístico que é mudar o género a um substantivo.

E o que é pior: quando pergunto a algum desses fanzinistas recentes, que dizem "a minha fanzine", por que motivo não dizem "o meu fanzine", respondem-me que é por ser uma revista(*), e como revista é uma palavra feminina...

E eu costumo objectar: então, como um pinheiro é uma árvore, temos de passar a dizer "uma pinheiro"?!

 Uma engraçada tira de banda desenhada de Laerte


Um universitário da Escola Superior de Design - ESAD, nas Caldas da Rainha - cidade onde há um buliçoso movimento fanzinístico -, reagindo à minha habitual discordância no uso do feminino para o fanzine dele, ripostou, com aquilo que começa a ser um chavão - já não é a primeira vez que oiço justificar asneiras com aquela frase -, "a língua portuguesa está sempre a modificar-se".

Eu sei isso, sou um estudioso da matéria. A componente mais visível dessa modificação é a constante absorção de vocábulos estrangeiros, aportuguesando-os por vezes, criando-se assim neologismos - desde o futebol, que era football, passando pelo jipe, que era jeep, pelo bife, que era beef, cartunista, que era cartoonist (há quem prefira o híbrido cartoonista, que seria o mesmo que escrever footebolista!), restaurant que passou a restaurante, até ao blóguer (ou bloguista) que era blogger, como exemplos.

Mas não há memória de, na língua portuguesa, ter havido mudança de género em algum substantivo. Estou a referir-me a mudanças correctas.

Porque, por iliteracia ou pura ignorância, há quem mude o género da palavra grama (peso). Por exemplo: uma funcionária dos correios, aqui em Lisboa, disse-me que a minha carta - com fanzines dentro - pesava "vinte e duas gramas". 
Eu perguntei-lhe se ela também diria, para uma encomenda pesada, "vinte e duas quilogramas"...

Outra mudança errónea do género: há quem diga "o síndrome", quando o correcto, respeitando a etimologia, é "a síndrome"(desta vez, o feminino a ficar deturpado)

(*) Diferença entre fanzine e revista


Vigora ainda entre nós o erróneo conceito de que o termo fanzine apenas se aplica a publicações de pouca qualidade gráfica, compostas por fotocópias ou, na melhor das hipóteses - mais actualizada - em cópias digitais, diferentemente do que se entende por revista, publicação impressa em offset, de qualidade superior. 

Ora sempre houve fanzines impressos em offset, de excelente aspecto gráfico, mesmo em Portugal - esta expressão "mesmo em Portugal" não pretende ser depreciativa em relação ao nosso país, apenas realça o facto de haver grande desconhecimento do que se fez entre nós, desde 1972, Ano I do fanzinato português, com o aparecimento em Janeiro desse ano do nosso primeiro fanzine, o Argon. e de alguns impressos em offset, entre os oito títulos editados nesse ano.

Mas quem já esteve em Angoulême, no grande festival francês de BD, indubitavelmente o maior evento europeu do género, pôde ver, no pavilhão dos fanzines, dezenas deles impressos em offset e até vários com lombada quando mais volumosos, exibindo uma apresentação gráfica a rivalizar com quaisquer publicações profissionais.
 

A este propósito, à conta do fanzine Efeméride - o mais recente dos quinze títulos que já editei - tenho ouvido com frequência o comentário: "isto é uma publicação luxuosa, é uma revista, já não é um fanzine!".

Mantém-se ainda hoje, portanto - julgo que só em Portugal - este preconceito em relação aos fanzines.


Insisto: uma qualquer publicação pode ter ISSN ou ISBN, depósito legal, até código de barras, e uma impressão gráfica de nível equivalente a qualquer revista comercial/profissional. Mas se não for publicada por uma editora legalizada, mesmo de pequena dimensão, se quem a edita não o fizer para beneficiar dos lucros das vendas, se o seu editor e respectivos colaboradores colaborarem pro bono, isto é, não lhes seja paga a colaboração, se não tiver periodicidade, se a sua tiragem for pequena, e por isso não puder ter distribuição a nível nacional, ou, como acontece em alguns outros casos, tenha uma concepção gráfica irregular - por exemplo, mudar repentinamente de formato -, então, por uma questão conceptual e de diferenciação de géneros, deverá ser-lhe aplicada a classificação de fanzine .

Não há nesta classificação qualquer intenção depreciativa, porque, afinal de contas, um fanzine é um campo de liberdade para a criatividade, é a permissividade total para que a imaginação se expanda sem limites, a todos os níveis: desde o conteúdo e a forma das obras publicadas, até à diferenciação dos títulos: enquanto que os das revistas são geralmente formais (Visão, Sábado, Nova Gente, Seara Nova) para serem bem aceites, ao invés dos dos fanzines, que são provocatórios, brincam com a ortografia ou com as cacofonias (KBD, Nuxcuro, Carneiro Mal Morto, Kaganiço, S. Francisco da S.I.S., Nova Gina). 
 

E na forma, um fanzine tanto pode ser modesto como luxuoso, depende da disponibilidade do faneditor, ou até de uma qualquer associação sem fins lucrativos - que também as há a editar publicações que se inserem na categoria de fanzines -, visto que essas associações não vivem das vendas, mas sim de apoios de beneméritos ou de associados. 

Em suma: um fanzine (ou um zine) pode apresentar-se sob o modo gráfico de revista, mas por todas as circunstâncias antes descritas, um fanzine não é uma revista, um fanzine é um fanzine é um fanzine.       


publicada por Geraldes Lino @ 4:56 da tarde 6 Comentários